A Dor

Nos últimos 10 dias o assunto quase único em todos os meios de comunicação e mídias sociais é o coronavírus. Um torrilhão de reportagens, jornalísticas posts e mensagens em redes sociais vem abordando principalmente as estatísticas, atualizações de números de casos, medidas de prevenção, isolamento social, consequências econômicas, comportamento dos políticos e há até uma avalanche de piadas sobre o tema. Tudo isso parece importante, pois é necessário prevenir, observar as tendências sociais, políticas e econômicas e mesmo as piadas são uma forma de descontração que ajuda a dar um sorriso e superar o estresse.
Não vi, entretanto, nenhum comentário sobre a dor relativa à morte de mais de 10,000 pessoas no mundo e, agora, já em torno de uma centena no Brasil. Não que eu pense que devemos ficar anunciando a dor, mas o fato me intrigou. Parece haver uma enorme sensibilidade para as alegadas perdas dos bancos, empresas, entidades esportivas e empreendimentos econômicos em geral. Vimos políticos aproveitando a oportunidade para acirrar picuinhas ideológicas e pessoais e empurrar suas agendas particulares, projetos de reformas que podem, em meio ao pânico, serem vendidos como essenciais até mesmo para controlar o vírus, quiçá aproveitando para passar seus projetos em regimes de urgência, sem discussão maior. Vimos jornalistas, em Santa Catarina, perguntar, de forma incitatória, se o governo do Estado aproveitaria para reduzir salários dos servidores públicos, o segmento que demonstrou sua crucial importância frente à epidemia. Vimos até notícias boas, como a limpeza dos canais de Veneza, mostrando mais uma vez que o ecossistema pode ser recuperado. Mas a dor ficou invisível.
Nas famílias e círculos sociais das mais de 10.000 pessoas mortas pelo vírus há sofrimento, angústia, choro, desespero. Foram-se entes amados que até recentemente partilhavam da vida familiar e comunitária, ajudavam, empreendiam, aconselhavam, brigavam, compartilhavam emoções e momentos felizes e menos felizes. Pessoas de todo tipo, nacionalidade, orientações políticas e opções sexuais. O vírus não discriminou classe, fé ou postura social. Vem devastando populações asiáticas, europeias, oceânicas, africanas e americanas. A dor também não deve ser muito diferente nos inúmeros lares atingidos.
Manifestações diversas ocorreram durante estes primeiros dias de pandemia. Panelaços, aplaudaços, orações, correntes de energia e até manifestações políticas de rua, mesmo em meio às orientações de evitar aglomerações. Mas nenhuma suficientemente forte para chamar atenção sobre a dor. Nenhuma oração, corrente de energia, ou manifestação pública de parlamentares, reportagens jornalísticas, posts de internautas sobre a dor. Se houve, não chegou ao centro das atenções da nossa sociedade.
Uma outra dor vem se instalando e também é pouco percebida. A dor das famílias já atingidas pela fome. Comunidades inteiras em todo o Brasil sofrem por já não terem o que comer. Não vi nenhum grande mutirão conclamando empresários, banqueiros e outras pessoas com possibilidades de doar comida para os habitantes destas comunidades. Talvez esta devesse ser uma ação prioritária para os Parlamentos, governos, as associações empresariais. E entidades comunitárias. Certamente aliviaria muitas dores. A fome dói
Não pretendo, com isso, conclamar manifestações, apenas penso que cabe uma reflexão sobre porque não há a mesma sensibilidade para a dor como para a ameaça do contágio, o índice de crescimento do PIB, a perda de lucro das grandes empresas e bancos e outras consequências econômicas, o despreparo dos líderes políticos, o estorvo do isolamento social. A imensa dor dos já atingidos talvez nos leve a pensar que o valor maior para a sustentabilidade social não é o lucro, mas a solidariedade. A organização econômica, política e social não se sustenta com base no egoísmo, na competitividade extrema e na ambição. Mas a solidariedade, a empatia, a sensibilidade para com o sofrimento do outro e o compromisso com a evolução socialmente e ecologicamente sustentável são pilares muito mais potentes para emergimos de crises como esta de alguma maneira melhor do que quando tudo começou.

Walter Ferreira de Oliveira